sábado, 1 de abril de 2017


01 de abril de 2017 | N° 18808 
ANTONIO PRATA

UM PAÍS BONITO


Sabe quando você sonha que está no seu quarto, mas não tem nada a ver com o seu quarto, mas sente que é o seu quarto? Foi tipo isso. Saí do elevador do hotel com a certeza de que estava no Brasil – afinal, ao entrar no elevador, eu estava no Brasil –, mas não parecia o Brasil. Vi, no hall, uns 20 adolescentes bem-vestidos, saudáveis, aparelhos nos dentes, cortes de cabelo estilosos; uns conversavam em rodinhas, outros ouviam música em seus fonões de ouvido, estirados nas poltronas com aquela mistura de arrogância e insegurança típica dos 15 anos, quando você pensa que sabe tudo e sabe que não sabe nada, ao mesmo tempo. O detalhe que me fez sentir-me dentro e fora do Brasil é que os garotos eram todos negros, pardos, morenos.

Me senti no Brasil porque os meninos tinham a cor e a fisionomia da maioria dos brasileiros. Fora do Brasil porque a maioria dos meninos brasileiros com a cor e a fisionomia daqueles ali não costuma frequentar lobbies de hotéis, bem-vestidos, de aparelhos nos dentes, cortes de cabelo estilosos, fones nos ouvidos, estirados nas poltronas. Costumam carregar as malas, limpar os quartos, sim, senhor, não, senhor, obrigado, senhor, disponha, senhor.

Mais do que as roupas, os fones, os cortes de cabelo, me impressionou a atitude daqueles garotos. Eles não estavam intimidados pelo ambiente. Não adotavam aquela postura servil ou agressiva que se espera de quem “sabe o seu lugar”. O lugar deles era ali. Pareciam 20 estudantes negros do Santa Cruz durante uma viagem de campo – mas aposto que se procurarmos entre todos os alunos do Santa Cruz, da primeira série ao terceiro colegial, não encontramos 20 negros. (Não é um problema do Santa Cruz. Eu nunca tive um colega negro na minha classe, do maternal ao terceiro colegial, nos colégios particulares em que estudei.)

Meu estranhamento durou uns dois segundos, no terceiro eu vi uma mala esportiva com o escudo do Corinthians e entendi o que estava acontecendo. Aquele era o time sub 17 ou sub 15. Aqueles eram os raros eleitos que por meio do futebol, da música, de outros esportes ou artes em que não se requer educação formal, conseguem ascender socialmente.

Perceber que se tratava de um time de base me deixou triste. Primeiro, porque eram a exceção que confirma a regra – não uma súbita revolução social, econômica e cultural que houvesse acontecido enquanto eu descia do quarto para o térreo. Segundo, porque boa parte daqueles garotos não vai chegar ao futebol profissional. Após uma década de esforços, de vitórias, de médico bom e dentista bom e lobby de hotel bom e orgulho das próprias conquistas, eles vão ficar na borda de algum funil e terão de se adaptar à vida que o país reserva pra quem nasce pobre e preto. Vão bater na trave e sair pela linha de fundo. Pela porta dos fundos.

Por dois segundos, eu vi um Brasil que havia superado a escravidão dos negros e o extermínio dos índios e dado chances iguais para todo mundo; não este país que faz pacto atrás de pacto através dos séculos para manter inalterada a nossa catástrofe. Era um país bonito.